A física da solidão

É uma metáfora simples, mas funciona. Os números primos são únicos e misteriosos. Não se percebe muito bem o seu padrão e a razão da sua indivisibilidade. Além disso, espaçadamente, surgem em pares, apenas separados por um número, como o 19 e o 21 ou o 27 e o 29. O mesmo acontece com os protagonistas do romance de estreia de Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, um autêntico fenómeno de vendas, sobretudo depois da atribuição do Prémio Strega, o principal galardão literário de Itália.
Para Alice e Mattia nada é fácil. A aprendizagem da vida faz-se de muita incompreensão e dor. A solidão marca-lhes a alma, tal como as marcas do corpo espelham o seu isolamento da sociedade. Uma «história emocional», como descreve Paolo Giordano, um estudante de Física, nascido em Turim, em 1982, que está a preparar uma tese de doutoramento em torno das questões inerentes ao acelerador de partículas. Embora sonho antigo, a escrita só surgiu há três anos e meio, mais por aborrecimento do que por decisão consciente. Primeiro chegou a música. Em criança, ambicionava ser uma «estrela de rock». Ficou preso aos acordes durante década e meia, influenciado pelas sonoridades do pop e da electrónica. Agora, trocou o palco pela escrita. E, enquanto digere este sucesso (só em Itália vendeu um milhão de exemplares), com direitos vendidos para muitos países, já começou a pensar no próximo romance. É que entre a Física e a Literatura, os números batem sempre certo.

Como é que um físico, a preparar uma tese de doutoramento, acaba a lançar um romance?

Estava um bocado aborrecido com o meu trabalho. Quando se está a estudar Física, na faculdade, aprende-se muito rapidamente e é tudo fascinante. Porém, quando se começa a investigar a sério um determinado aspecto cada avanço leva meses. Por isso, senti que precisava de algo mais livre, sem as apertadas regras da Física. Além disso, a ideia de escrever um romance era antiga. Levou tempo porque provavelmente não fui suficientemente corajoso e pensava que talvez não fosse bom o sufi ciente. Até que, aos poucos, há três anos e meio, comecei a escrever contos e, passado algum tempo, arrisquei algo maior.

O que o atraiu inicialmente na Física?
Foi uma espécie de desafio. Era a disciplina em que tinha mais difi culdade na escola. Mas também aquela que sempre pensei que me podia levar mais longe ao nível do conhecimento. Na Física vamos até ao detalhe. Em A Solidão dos Números Primos sente-se uma grande precisão na linguagem.

A Física influenciou a sua escrita?
Acho que sim. No campo da Física Precisa temos de nos preocupar com números, com a exactidão dos números. Temos de saber tudo ao detalhe. Provavelmente, isso moldou a minha cabeça. E, de facto, tentei ser o mais preciso possível na linguagem. Usar nada mais do que o necessário.

Encontrar as palavras exactas?
Exactamente. Se sinto que uma frase pode ser dita de uma forma mais precisa volto a escrevê-la, uma, duas, três, as vezes que forem necessárias. Mas a par dessa precisão cerebral, sinto a presença da música, o trabalho com o ouvido na construção da sonoridade das frases.


Através da Física poderíamos dizer que A Solidão dos Números Primos é um livro sobre a atracção dos corpos. Qual foi o seu ponto de partida?
Nas leis da gravidade, quando temos dois corpos eles atraem-se, mas a partir de certa altura não conseguem aproximar-se muito, passando a girar em torno de um centro. O mesmo acontece com estas personagens. Elas sentem-se atraídas, mas como são muito parecidas quase que se repelem. Sempre me intrigou por que motivo não conseguimos chegar demasiado perto de algumas pessoas que nos são muito próximas e pelas quais sentimos uma grande atracção, até ao nível sexual. É uma espécie de história de amor imperfeita.

Mas o que lhe interessou nos protagonistas deste romance, bem longe da normalidade?
Não foram planeados. Quando introduzia uma nova personagem, ela acabava dominada pela solidão ou pelas suas idiossincrasias. Só depois percebi que era sobre isso que eu queria escrever: a escuridão que todos sentimos dentro de nós, enterrada por baixo de muitas coisas e que se expressa de muitas maneiras. As atitudes dos protagonistas, às vezes extremas, sãouma forma de mostrar essa escuridão.

É essa a ideia do título do romance?
É o fascínio de todo o estudioso da Matemática e da física. São tão simples de definir que até um criança que saiba contar até 10 consegue explicá-los. Contudo, mesmo com essa simplicidade há um mistério, ainda por resolver, sobre o padrão que seguem. Daí serem tão especiais e peculiares, como estas personagens.

No entanto, tanto Alice, quanto Mattia têm um enorme instinto de sobrevivência.
Nunca pensei muito sobre isso… Talvez. São vitais, num certo sentido. Provavelmente, grande parte dessa vitalidade vem da tensão que existe entre ambos, porque ao longo de toda a história eles partilham a dor um com o outro.

Este é um livro que fala sobre a actualidade? Estamos a viver tempos de solidão?
Não sei se hoje em dia a solidão é maior do que em outras épocas. Numa resposta rápida, diria que não, na medida em que temos tantos meios para nos comunicarmos, como os telemóveis e a internet. Costumo trabalhar muito com estudantes, e eles parecem-me já tão diferentes do que eu era com a mesma idade. Estão sempre a comunicar. No entanto, há uma grande sensação de precariedade, sobretudo nos últimos meses, como se as coisas estivessem movediças. É algo que se entranha na pele.

Este seu romance de estreia foi um enorme sucesso. Consegue explicá-lo?
Nunca é fácil explicar, sobretudo quando se trata de livros, que são um mistura de muitas coisas, incluindo coincidências. Talvez porque seja uma história muito emocional. O único objectivo que eu tinha em mente era fazer um livro acessível, sem ser simples, nem banal.

Versão ampliada da entrevista publicada no JL n.º 1003

No comments:

Post a Comment