Quem quer ser pobre?


Sem ser inédito, é sempre surpreendente. Aravind Adiga, um jornalista e escritor indiano, nascido em Madras (actual Chennai), em 1974, ganhou o Man Booker Prize 2008, o mais importante prémio literário de língua inglesa, com o seu romance de estreia. E não é para menos. O Tigre Branco, que chega a Portugal pela mão da Presença, é uma extraordinária parábola sobre as contradições e desafios que as grandes potências do Oriente, em particular a Índia e a China, enfrentam.
Contra todas as probabilidades, Balram Halwai consegue romper com a sua condição (e casta) de pobre e chegar ao mundo empresarial de Bangalore. E quando ouve a notícia da visita oficial ao seu país do primeiro-ministro da China, Wen Jiabao, decide contar-lhe a sua vida. É uma conversa que se prolonga durante sete dias e na qual vamos conhecendo todas as suas peripécias, desde o quotidiano na «Escuridão» até ao golpe com que conquistoua liberdade e um lugar na «Luz».
Desta forma, Aravind Adiga, que viveu na Austrália e nos Estados Unidos da América e colaborou com a Time e o Financial Times, tentou perceber como seria a sua própria vida caso tivesse nascido pobre. E a verdade é que, como diz nesta entrevista, «não há saída para a favela». A menos que, como Balram Halwai, se opte pelo crime.

Qual foi o ponto de partida deste romance?
O Tigre Branco é uma ficção e não um trabalho de jornalismo, como muitas vezes é apresentado na Europa. Só tem intenções literárias. Claro que para uma pessoa de Portugal pode ter um sentido muito diferente e ser visto como um olhar sobre a Índia. No entanto, conta a história de um homem que tenta conquistar a sua liberdade. E essa busca é o tema central do romance. Trata-se de uma narrativa sobre alguém como eu, mas de uma classe social diferente. Alguém pobre, mas que tem as mesmas preocupações que eu. Que tenta ser livre na vida, sem a pressão da religião, da sociedade, da família ou da economia. Claro que para mim é mais fácil conseguir essa liberdade. E o desafio foi perceber o que teria acontecido caso eu tivesse nascido pobre,como a maioria de pessoas no meu país. Temos uma sociedade extremamente hierarquizada, com ricos, classe média e pobres, sem grande mobilidade social. E há tendência para se achar que os pobres são pessoas diferentes. Que têm aspirações diferentes. Que têm emoções diferentes.

Nesse sentido, a personalidade «tigre branco» é uma metáfora?
Todos estamos presos a algo. Ao mesmo tempo, qualquer pessoa é um potencial tigre branco, alguém único e diferente. Mas muitas forças sociais podem limitar a nossa individualidade. E há quem aceite isso. A sociedade dá-nos estabilidade, casamento, emprego e, para o retribuir, sacrifi camos a nossa individualidade. Provavelmente, nem todos estão preparados para esse sacrifício. O tigre branco insiste na liberdade total para a sua vida, independentemente das consequências. Mesmo se isso implicar um crime.

Para contar a sua história, o tigre branco dirige-se ao primeiro-ministro chinês. Como surgiu essa ideia?
Ele não está a escrever cartas, nem e-mails. Está em casa e começa a falar em voz alta. Ouve na rádio que o primeiro-ministro chinês vai visitar a Índia, o que na realidade foi um acontecimento histórico para dois países com relações diplomáticas muito más. Por ser megalómano, Balram Halwai – que não é o herói do romance, antes um anti-herói – está sempre a comparar-se com pessoas importantes. Como trabalha pela noite dentro, imaginou-se em grandes conversas com o primeiro-ministro da China. Ao mesmo tempo, foi uma forma de chamar atenção dos meus leitores indianos para algo que por vezes têm como garantido: que a Índia e a China vão ser grandes potências e governar o mundo. Esta opção permitiu criar vários registos na história. Mas, na verdade, ele não pode contar a sua vida a mais ninguém.

Numa sociedade de matriz cristã, como a europeia, sete dias – o tempo de duração do romance – têm uma simbologia muito forte, ligada à criação. Foi uma opção intencional?
Claro que sim. É um período de tempo importante em qualquer cultura. No fundo, ele está a contar a história de como se criou a si próprio, de como se tornou dono de si próprio. Por outro lado, é uma paródia, porque ele não conquistou essa independência da forma mais correcta. Criou-se a si mesmo através do crime.

A ironia e a estrutura quase detectivesta do livro contribuem para essa paródia?
Exactamente. Não há nada no meu livro que não seja conhecido dos leitores indianos. Tivemos um boom económico, entre 1995 e 2005, mas só beneficiou a classe média, não fez nada pelos pobres. Ao usar a ironia e o suspense é possível falar sobre algo extremamente desagradável para os leitores, sobretudo para os indianos da classe média. Outro aspecto que me interessou foi o facto de, na Índia, haver uma divisão muito rígida entre literatura erudita e popular. E isso condiciona o estilo. Na erudita, feita pelos escritores mais famosos, a acção tende a ser lenta, cuidadosamente escrita e estruturada, com temas e protagonistas das classes médias e altas, politicamente de esquerda ou liberais. Na popular, às vezes escrita nos dialectos indianos, são mais frequentes as ficções científicas, os policiais, as obras pornográficas, tudo muito rápido, com protagonistas das classes baixas. O meu objectivo foi fundir as duas literaturas. Segundo essa divisão, esta história é perturbante não só pelo tema, mas pela forma como é contada.

O Tigre Branco aborda as profundas contradições da sociedade indiana. Não teme que, embora ficção, seja visto como um livro político, portador de uma mensagem forte?
Nunca o vi nessa perspectiva. E também não saberia dizer que mensagem poderia ser extraída do livro, porque o herói é um criminoso.

Nem na descrição dos políticos e da corrupção que usam para chegar ao poder?
Isso é algo que acontece sobretudo no Norte da Índia. Muitos políticos são controlados por criminosos. Essa é a ironia. Para um pobre conseguir chegar a rico só tem dois caminhos: o crime ou a política. A minha personagem questiona a legitimidade do sistema, que permite a ascensão de criminosos a altos cargos.

O Tigre Branco é lançado em Portugal depois de Quem Quer Ser Bilionário? ter sido distinguido com oito Óscares. Estamos a descobrir uma nova Índia?
Não sei que imagem se tem da Índia. Para mim são dois romances e duas histórias muito diferentes. Baseiam-se no facto da maioria da população indiana ser pobre, o que é verdade. Não ter isso presente é estar desfasado da realidade. Por vezes, os nossos escritores, realizadores e artistas têm vergonha desse facto, o que faz com que os pobres não apareçam muito. Mas não devemos fi car envergonhados. É a nossa realidade. O que eu não gosto no filme Quem Quer Ser Bilionário? é que banaliza o carácter esmagador da pobreza. Sente-se logo que é uma fantasia. É impossível um rapaz da favela chegar a um concurso como aquele. O problema é que não há saída para a favela. Ou se aceita, ou se tenta contorná-la pelo crime e pela política. Não há fantasia.

Como vê o futuro da Índia e da China enquanto potências emergentes? Podem ter um papel decisivo na actual crise?
É inevitável. Um dos resultados práticos desta crise parece ser que a Índia e a China vão ser ainda mais importantes daqui a cinco anos. A crise acelerou esse processo. Mas têm de ser países mais maduros. O primeiro passo é resolver os problemas internos. No caso da Índia o maior é, sem dúvida, o fosso entre ricos e pobres.

Entrevista publicada no JL n.º 1003 (foto de Mark Pringle)

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